sábado, fevereiro 10, 2007

SIM

SIM
(texto roubado ao Ad Loca Infecta)

"Quem não me deu amor, não me deu nada."
Ruy Cinatti

Mãe, ou pai, é quem cria com amor. Fora disso, não existe senão o automatismo biológico da procriação. Como sabiam os filósofos antigos, não é a vida o que importa, mas sim a dignidade com que a mesma é vivida. Uma criança não desejada é uma criança condenada ao pior dos infortúnios: o desamor. É uma criança, portanto, condenada à indignidade. A menos que tenha a sorte “de ser adoptada e blá-blá com amor etc.” A sorte. Mas a dignidade da vida humana não devia ser uma questão de sorte. Devia ser – adivinharam – um direito. E muito mais importante (ou “sagrado”, se quiserem) do que o propalado direito a nascer.A este respeito, os arcaizantes defensores do Não ao aborto limitam-se a reproduzir chavões de origem religiosa (que muitos confundem com “ética”); pois aquilo a que eles chamam o direito à vida traduz-se, de facto, no mero direito à sobrevivência física, ou seja, à indignidade. (Eu também acho que o mais importante é estar vivo – a minha anedota preferida até é aquela do “Mexeu-se! Mexeu-se!” que por certo conhecem –, mas isso é depois de se ter nascido. Antes, que diferença faz?) E dizem-se então chocados, os do Não, com a ideia de interromper um nascimento; mas não os choca a indigência material, intelectual e moral em que vivem as crianças pobres e não desejadas. (Uma indigência para a qual muitos deles, grandes cínicos, contribuem activamente: legislando, remunerando, despedindo, etc.) É assim, a infelicidade dos outros não os choca, o que os choca é a opinião contrária: a opinião soprada contra as velinhas que os alumiam. Incomoda-os a liberdade dos outros. Assusta-os.

Porque o direito a dispor do seu corpo é, queira-se ou não, uma afirmação de liberdade. Filosoficamente, a coisa põe-se nestes termos: por um lado o direito a nascer, por outro o direito à liberdade sobre o seu corpo. O direito a nascer só se pode “justificar” em termos religiosos; enquanto que a liberdade é um conceito filosófico e político. A natureza é uma armadilha de que não se escapa, sabemos isso, pelo que a liberdade sobre o corpo é sempre condicional. Mas se a natureza, graças à Medicina (invenção, recorde-se, do século XVIII), já não vence todas as batalhas (só a última, a decisiva, ai ai!), se já nos é possível “negociar” com a carcereira natureza, porque haveriam as mulheres de continuar escravas do determinismo biológico? Em rigor, quem aceita combater a natureza com a ajuda da contracepção e da medicina não tem argumentos para proibir o aborto. O que está em jogo, em qualquer tipo de manipulação médica, é sempre a afirmação do homem contra os “abusos” da natureza. A natureza “quer” que as mulheres tenham um filho por ano entre os 13 e os 53, ou assim. Não pode ser, não nos dá jeito nenhum a proliferação caótica. A natureza “quer” que os homens morram de uma apendicite. Não nos dá jeito, também. E por aí fora.

Assim, mais do que o batimento cardíaco, que o bipedismo, mais do que a razão, mais até do que o uso do telemóvel, é o exercício da liberdade que define o homem; e a liberdade é o que caracteriza a vida que é digna de ser vivida. De resto, os médicos sabem disso quando desligam a máquina que mantém artificialmente vivo um doente, ou quando provocam o aborto de um feto mal-formado, ou quando ajudam um doente a suicidar-se. Em todos estes exemplos, aquele ser humano já não pode (ou nunca poderia) ter uma vida digna, uma vida livre: a pessoa em coma está na dependência da sua máquina, tal como o feto mal-formado está condenado à tornar-se num ser totalmente dependente, e o doente terminal está na dependência da natureza e do minuto em que esta decida que o sofrimento dele é já bastante. Razão pela qual, nestes casos, a liberdade e a dignidade do homem são levadas em conta e influem na decisão de interromper a vida. E quem achar que isto é moral e filosoficamente aceitável, não pode condenar a mulher que aborta.

(Curiosamente, a aborto eugénico é candidamente aceite pela maioria dos que fazem campanha pelo Não. O que mais do que uma contradição é um absurdo. De acordo com o meu padrão de valores, o aborto eugénico é bem mais condenável do que o aborto que impede o nascimento de mais uma criança não desejada, pois uma criança deficiente não é necessariamente infeliz, enquanto que uma criança desamada tem tudo para o ser.)Eu seria capaz de compreender a filosofia (mas não de aceitar a prática proibitória) dos anti-abortistas se eles defendessem, coerentemente, a interdição absoluta de interromper a vida. O pacifismo absoluto dos jainistas parece-me respeitável, mesmo que não partilhe as suas concepções religiosas ou metafísicas. Mas não é o pacifismo que move a maioria dos anti-abortistas, pois muitos deles não sentem qualquer embaraço em aplaudir vigorosamente uma guerra ofensiva ou de ocupação, ou a pena de morte. É nestes “vitalistas selectivos” que o mecanismo da estupidez humana assume contornos irracionais, quase atávicos. Alguns deles chegam a defender a obrigatoriedade de as mulheres levaram a gravidez até ao fim porque uma criança representa mais um “trabalhador”, como dizia há dias uma gaja do PP, preocupada não sei se com a extinção da raça tuga se da mão-de-obra para a sua indústria. Incrível! Mas, enfim, deixá-los.

Não queria deixar de me pronunciar sobre este tema, que é inesgotável e apaixonante; mas são 2,50, estou certo que já perceberam o meu nada original ponto de vista (apesar da pressa, do esquematismo, do desalinhavo com que vai para o ar) e por aqui me fico então. Obrigado. -JMS

Subscrevo.

9 comentários:

Kaos disse...

Um bom texto que também assino por baixo. Felizmente a esta hora já o sim venceu.
bjs

Anónimo disse...

loirinha, postar este texto às 14:52 de um sábado de reflexão? tsss.

Anónimo disse...

este tipo de reflexão é punida por lei. ou queres também um referendo sobre IVR?

Anónimo disse...

Belo texto...ERS. O Pirolitp também acha, pu não tivesse sido ele tb/ abandonado e fruto de desamor...

Anónimo disse...

Gostei!

Anónimo disse...

oh minha, mas sempre podes refletir para os dois lados. quando tornas pública apenas uma das partes da reflexão é que já é mau.

olha, gosto deste verbo:

eu abstive
tu abstiveste
ele absteve
nós abstivemos
vós abstivestes
eles abstiveram

e não é fugir à responsabilidade, pelo contrário, é passar a batata quente prós lados do governo, e como sei que o socrates e o melícias não são muito chegados, sempre há esperança que faça aquilo para que foi eleito: GOVERNAR.

Anónimo disse...

nunca vi um anarquista, ou mesmo alguém a roçar o anarquismo, a conjugar o verbo votar!

e claro que é sempre bom tornar pública uma reflexão, estamos numa democracia e qualquer um(a) pode gritar aos ventos aquilo que lhe vai na alma (desde, é claro, que não ofenda intencionalmente os outros). mas como estamos numa democracia, esta democracia, que impôs-nos um sábado não de aleluia mas de reflexão, não aceita que se dê meia dúzia de berros no dia que criou.

porque se não existissem regras, ou pior se ninguém cumprir as regras, quem me impede ir para a boca duma urna gritar “PORTUGAL PRÓ SÉCULO XXI – VOTA…”

e sim, é verdade, que por este país fora ainda há quem vá para as urnas controlar as votações. já quase toda a gente viu ou ouviu histórias destas, mas, esteva, à mulher do cesár não basta ser séria…

Anónimo disse...

mas pensar alto?

Anónimo disse...

entre ti e o padre que pregou no domingo do referendo...